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segunda-feira, 23 de maio de 2011

Não se meta com as de catorze...

Miro 16 de outubro de 2009.

Estava na hora mesmo do Magrão se aposentar. Contou os anos, os meses, os dias até as últimas horas. Chega de Ordens de Serviços, chega de dizer verdades aos chefes, chega de chiado de rádio VHF... xxx copia xxx... de escutar a lenga-lenga de consumidores, que sem ter o que fazer, íam conversar com ele na Agência Bacacheri.

Agora era tempo de folgar para sempre de colocar em prática o seu querer. Pescar! Na hora que quisesse. Ir no boteco! Na hora que quisesse. Cuidar da chacrinha com vontade, fazer chacrinha em dia útil, mesmo sem vontade. Cantar como quisesse e de tarde, no karaokê do boteco, livre das filas de noturnos cantores improvisados.

Quando recebeu a bolada de incentivo que a empresa lhe deu para aposentar foi comprar uma camioneta novinha, um querer antigo, uma Totóia preta, uma jóia negra, como tinha feito o Alemão, seu antigo chefe.

Saiu cedinho de casa e estava parado no sinaleiro da Rua Tefé quando viu aquele sapato branco bonito, lustroso, atravessando com seu brilho o parabrisa e sua retina... era o sapato que ele sempre sonhara!

-Eu quero! Pensou alto, com seus botões da camisa desabotoados no peito cheio de "quereres"!

Imagine só... ele num daqueles bailes com música de problema, com seu sapato branco brilhando na luz negra, de fazer inveja aos malandros da Vila Pinto. Ao seu lado, uma viçosa acompanhando com seu saltinho 14, os passos maneiros num rala cocha daqueles, numa música daquelas...

-quem não quer uma coisa destas?

Quase não parou o carro, desceu correndo e perguntou se tinham o número 42.

-Infelizmente, respondeu uma mocinha que parecia ter uns quatorze aninhos, só temos um quarenta e um.

-Deixa eu ver...

Ficou acompanhando a mini saia manhosa da guria subir a escada para pegar o reluzente alvo “alvo” na vitrine. Afastou os maus pensamentos quando lembrou da frase que tinha ouvido do barbeiro:

“-Não se meta com as de quatorze!” ...

Deu risada sozinho, imaginando o sufoco do barbeiro fugindo de Nova Divinópolis, perseguido pela polícia que queria que ele casasse com a namoradinha de quatorze que dizia estar grávida dele... Depois de muito sufoco, alguns dias de cana e outros em cana, o barbeiro conseguiu provar que o filho não era dele, claro que antes disto ele teve que vender a moto e a barbearia, e dar todo dinheiro para ela, por isto:

“-Não se meta com as de quatorze!”

A mocinha lhe entregou os sapatos brancos...

Espreme o pé daqui, afroxa o cadarço ali, tira a meia e pronto... conseguiu enfiar o sapato nos pés.
No espelho inclinado da loja, ela viu no rosto do Magrão aquele sorriso de piá pançudo comendo cocada antes do almoço! No mesmo espelho ele olhava disfarçado um bom pedaço daquelas cochas brancas... Pensou: aí meu verdãoeôoÔ! Um século de Time! Será que ela é cocha-branca?

-Quanto é? Disse rápido afastando do pensamento mais um:

“-Não se meta com as de quatorze!”

-Cento e noventa e seis reais, mas dá para fazer em vezes... 14 vezes de 14...

-É muito! 41 não é o meu número, além disto é 14 ao contrário, é muito 14 pro meu gosto.

Ela não entendeu muito aquilo que ele estava falando...

-Você é numerólogo? Entende destas coisas?

-Não, não, não, só pensei alto sobre as 14 prestações de 14.

-Se quiser colocamos numa forma e em 2 semanas ele fica bom.

-Pago 3 oncinhas!

-O que?

-Cento e cinquenta no cacau!

-Vou falar com a chefia...

Quando voltou ela veio em sorriso de todos os dentes.

-Feito! Quer que embrulhe ou vai mandar por na forma?

-Nada disto, vou amaciá-lo no pé, 14 dias é muito tempo. Você tem pantuflas?

-Tenho, aquela alí oh! Amarela...

-De pé de Piu-piu, não tem outra?

-Tem a cor de rosa da Pantera Cor de Rosa.

-Não, não... quanto a de Piu-piu

-Custa 14 reais...

-Eu quero, vou levar!

Enfiou a sacola com o sapato velho e a pantufla no carro e foi para a agência de automóveis, pensando no que ele não iria mais fazer: levantar cedo, trabalhar, ouvir reclamações de corte de luz.

Já tinha acertado o preço na concessionária, entrou com seu reluzente sapato, todos olhavam para aquele branco total irradiante caminhando em direção a camioneta preta, lindinha de tudo, com cheirinho de couro novo, 4 por 4, automática, sem IPI.

Preencheu o maior cheque da vida dele e deu para a vendedora japonesa que era também uma belezinha, um tchuchuco de mulher, bem feitinha, um primor!

-Você conseguiu a placa que eu quero?

-Sim, uma AIM 1414 ou uma AIM 1915.

-Quero a 1915. Ainda bem que a camioneta não é aro 14.

-Se Você quiser, pode ver a seção de acesórios... dá para colocar aro 20!

-Não, eu quero ela assim mesmo como ela está, "tá de lei"! Pode mandar emplacar e por no seguro?

-Vai demorar um pouco.

-Eu espero, só tenho compromisso de tardezinha no boteco.

Já tinha fumado mais de 14 cigarros no lado de fora da concessionária, quando a japonezinha avisou que a vistoria só sería feita às 14 horas. Pra matar o tempo ele foi no Shopping. Caminhou por todas as lojas: um pirilampo com seu sapato branco... que nesta altura já latejava do minguinho ao calcanhar.

Comeu duas empadas pensando na costela que devia estar sendo assada no boteco. Todo mundo olhava para ele... de sapato branco, imagine quando o virem de totóia preta, quem pode se aguentar com isto?

Viu um carro da empresa passar e instintivamente abanou com a mão. 34 anos 3 meses e 14 dias de empresa... uma vida de dedicação e muita história. Agora não era mais hora de pensar nisto...

Voltou para a concessionária no horário marcado, os pés já estavam amortecidos de tanto caminhar no Shopping.

-Os peritos já vão chegar!

-Não chegaram ainda?

-Não, mas vão chegar...

Espera daqui, dali, mais 14 cigarros e 14 minutos antes de fechar a concessionária o carro ficou pronto. Entregou as chaves e o documento do carro velho, que agora parecia mais velho e feio, pulou para cima da camionete preta com seu sapato branco e se mandou para o boteco.

Uma quadra antes já estava buzinando, fazendo aquela algazarra de piá de prédio quando ganha uma bicicleta e vai andar com ela sozinho na pracinha da esquina.

O pessoal já estava animado, a salineira pela metade da garrafa e o aperitivo de lingüiça servido.

-Venham ver a belezinha!

Todos sairam, foi quando o Batuta começou a dar aquela risada de gato de madame após comer o passarinho da gaiola do vizinho...

-Que foi galo índio?

-Por que Você está andando deste jeito, feito uma gazela manca em campo de urtiga, com este sapato branco?

-Eu que quiz! Ele é novinho, foi prá combinar com a tétéia preta da totóia, tá só um pouco apertado.

-Olha lá a placa! Tem as iniciais do teu nome!

-É! Tem mesmo! Eu que quiz!

-Que legal! E é o ano do teu nascimento...

O Magrão faltou pular no pescoço do Batuta, que lépido, entrou na pretinha e disse:

-Quero dar uma volta na totóia...

Orgulhoso, o magrão ligou a bichona, ainda bem que era automática, o pé já estava completamente emprestável, mas ele não ía tirar os sapatos só por isto. Testou a aceleração, foi de 0 à 100 em 14 segundos, macio, macio. Ligou o CD alto só com música de raízes.

Passaram por umas gurias novinhas, uma delas lhe abriu um sorriso largo por debaixo do chapéu de cowboy de borracha. Ele retribuiu satisfeito e quando o Batuta fez umas gracinhas para elas, ele não aguentou e disse:

“-Não se meta com as de quatorze!”

-É mesmo. Não se meta com as de quatorze! Vamos voltar?

Os dois deram risada e voltaram para o boteco, onde terminaram rápido com a salineira, lembrando das pescarias no Mato Grosso.

-Lembra aquela vez que o Magrão caiu da pedra do melhor pesqueiro?

-Caí nada! Eu que quis! Respondeu rápido e já vermelho o Magrão, mantendo, é claro, sua nobre pose de pescador Master Senior Hors Concours.

No final da noite ele não aguentou a dor nos pés, foi no carro e colocou a pantufla.

Uma delícia, parecia que ele respirava pelos pés, quando entrou de novo no bar, agora com amarelo nos pés, antes que o pessoal começasse a rir, ele franziu o senho e falou bem sério:

-Eu que quis! Agora sou um aposentado, posso usar o que quiser, quando quiser, sapato branco e pantufla amarela! Só não posso... é me meter com as de quatorze...

Foram exatos 14 microsegundos de silêncio antes do bar explodir em risos...

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